Início Plantão Brasil Cacofonia deixa de ser pecado mortal e vira ferramenta para o jornalismo

Cacofonia deixa de ser pecado mortal e vira ferramenta para o jornalismo

A língua portuguesa é cheia de armadilhas para os mais desavisados. A pressa ou mesmo a falta de atenção podem levar um jornalista experiente a publicar uma manchete, digamos, pornográfica. Dúvida? Basta fazer uma busca na internet, que, provavelmente, vai se deparar com a chamada do UOL “Cuba lança acesso wi-fi” ou a pegadinha de um jornal cearense “Quadrilha explode banco e usa escudo humano”.

 

 

 

Irônicas, bem-humoradas ou mesmo desatenciosas, as manchetes ou trechos com cacofonia têm sido cada vez mais presente em textos jornalísticos. Para os estudiosos, a razão é simples: falta de atenção. Porém, não condenam totalmente a prática, uma vez que os cacófatos deixaram de figurar na caça às bruxas dos especialistas, tornando- se um recurso para brincar com a língua.

 

 

 

Crédito:divulgação
Cláudio Moreno, Lilian Passarelli e Sérgio Nogueira (esquerda/direita)

 

 

Antes de mais nada, é preciso esclarecer o que pode ou não ser considerado um cacófato. Sérgio Nogueira, consultor de língua portuguesa do jornalismo da Rede Globo, explica que a cacofonia só existe quando “palavras juntas criam um som desagradável ou mesmo um palavrão”. No entanto, ele defende que, com o passar do tempo, o conceito de cacófato foi se ampliando de forma que palavras que antes não seriam consideradas de baixo calão entraram na barca desse vício de linguagem.

 

 

“É sempre bom lembrar o famoso “alma minha” que aparece no poema de Camões. Numa época em que maminha não tinha nenhuma conotação sexual, acho um exagero achar que isso era um cacófato.” Cláudio Moreno, professor de língua portuguesa dos Colégios Leonardo da Vinci e Alfa e Beta, de Porto Alegre (RS), vai além e declara que conceito de cacofonia deixou de existir.

 

 

“Essa era uma preocupação do início do século XX, quando o olhar sobre a linguagem era extremamente  censurador.” Para ele,tirando os casos em que fica muito explícito, especialmente na língua falada, é preciso “ter um olhar determinado a encontrar um cacófato em um texto”, especialmente porque a leitura silenciosa não permite a formação desses “sons desagradáveis”.

 

 

 

“A leitura silenciosa não é feita em voz alta dentro da cabeça. A leitura pelos olhos não passa pela audição.  Então, para perceber um cacófato é preciso fazer uma leitura específica, ou seja, ‘vou ler aqui e ver se encontro alguma palavra estranha’”, explica Moreno. Seguindo essa mesma linha, a professora Lilian Passarelli, chefe do Departamento de Português da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), vê o cacófato em desuso no sentido literal de sua definição. Porém, acredita que ele passou a ser mais tolerado tanto no meio acadêmico quanto na imprensa, ficando apenas como um recurso do “campo do irônico, do engraçado”.

 

 

Braços dados com o humor

Apesar de perseguido pelos linguistas mais puristas, o cacófato já foi inspiração de marchinha de Carnaval: “O Brasil vai lançar um foguete/ Cuba também vai lançar/ Quero ver se Cuba lança/Quero ver Cuba lançar”. O chamado vício de linguagem nasceu de braços dados com o humor e a ironia.

 

 

Nogueira acredita que muitos cacófatos acabaram sendo inventados ao longo do tempo exatamente para fazer graça. “Cuba lança me parece que está nessa lista.” Para Moreno, esse humor com as palavras geradas pela cacofonia mostra “o lado criativo e bem-humorado da linguagem”. Ele acredita que os caçadores de cacófatos “procuram pelo em ovo”, uma vez que “muitos exemplos precisam de explicação, porque quem está lendo nem os percebe.

 

 

O fato é que com o passar dos anos e a evolução da língua, o jornalismo “adotou” a cacofonia para lançar manchetes de duplo sentido, como, por exemplo, “Cuca indo”, frase usada para anunciar a saída do técnico de um clube mineiro. “Hoje há uma tolerância maior para o cacófato, mesmo na imprensa. Uma manchete de jornal com um dos cacófatos mais famosos como esse acaba virando piada. Não se sabe se o veículo mantém de propósito para viralizar e levar a notícia para outras paragens, divulgando o nome do jornal”, atesta Lilian Passarelli.

 

 

Mesmo que hoje os cacófatos sejam mais aceitos, é na linguagem falada que eles ficam mais explícitos. Um exemplo clássico dos escorregões que a cacofonia pode gerar aconteceu durante a narração de um jogo da seleção brasileira: “Fábio Conceição pediu a bola e Cafu deu”. Para Moreno, embora a língua falada seja o campo de ação do cacófato, é preciso ter o ouvido ligado para sacar de cara o palavrão. “Dia desses ouvi em um programa de culinária na TV o apresentador dizer: ‘não gosto de descascar alho’.

 

 

Duvido que alguém tenha ouvido c… Tem que ter o ouvido do Joãozinho para se escandalizar com isso”, explica. Segundo os especialistas, a melhor forma de evitar ser pego de calças curtas pelo cacófato é conhecer os exemplos clássicos e ler o texto em voz alta antes de publicá-lo. “Na imprensa ou não, acho que deve-se fazer um treino, perceber os sons das palavras e, obviamente, perceber se a união das sílabas forma outra palavra ou um palavrão. É questão de atenção”, conclui Lilian.