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Livro desvenda figura do malandro carioca

Os versos do samba Malandro é malandro e mané é mané, de autoria de Neguinho da Beija-Flor e popularizado pelas vozes de Bezerra da Silva e Diogo Nogueira, sintetizam bem o universo do típico malandro carioca: "Malandro é o cara que sabe das coisas/ malandro é aquele que sabe o que quer/ malandro é o cara que tá com dinheiro/ e não se compara com um Zé Mané." Cantado em prosa e verso por vários artistas da música e da literatura, o malandro foi tema da tese defendida por Giovanna Dealtry, doutora em Estudos de Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
 
O estudo rendeu a publicação do livro No fio da navalha – malandragem na literatura e no samba (ed. Casa da Palavra, 2009, 207 p.), publicado com apoio da Faperj. Para Giovanna, definir com precisão o termo malandro é difícil porque ele carrega uma forte ambiguidade. Depende mais do contexto e da entonação em que se diz do que de um significado fixo.
 
– Chamar alguém de malandro pode ser tanto um elogio, para alguém que aproveitou uma boa oportunidade, quanto um xingamento, para um sujeito trapaceiro – observa a professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.
 
Ela acrescenta que o malandro é um estrategista, capaz de valer-se do anonimato, do discurso inesperado e da antecipação ao outro para garantir o ganho pessoal.
 
O livro traz reflexões sobre a figura do malandro e suas representações na literatura e na música popular, além de propor um olhar sobre a disseminação de estratégias da "malandragem" na cultura brasileira. Giovanna explica que o malandro não se restringe à clássica figura vestida de terno de linho branco, camisa listrada, chapéu panamá e sapato com biqueira.
 
– O livro busca romper com a ideia estereotipada de que todo malandro é preto, pobre e sambista. Existem malandros em todos os níveis sociais. Ser ‘filhinho de papai’, por exemplo, é uma forma de "malandragem". O malandro tem aversão ao trabalho e valoriza a própria imagem – diz.
 
Na obra, Giovanna tenta explorar vários caminhos: os seres malandros presentes na religiosidade afro-brasileira, como Exu e o Zé Pilintra, da umbanda; a "malandragem" no samba antes de seu apogeu, nos anos 1930; as relações entre o escritor marginal e o ocaso do Rio Malandro, tematizado em Desabrigo, de Antônio Fraga; João do Rio e as investigações sobre "a gente de cima e a canalha", ambas inescrupulosas; e finalmente, a "malandragem" branca e romântica de Manuel Antônio de Almeida e Martins Pena.
 
Jeitinho malandro de ser
 
Ao lado do famoso "jeitinho brasileiro" de resolver qualquer situação do cotidiano recorrendo à lábia e à pessoalidade, a "malandragem" representa uma característica marcante das relações sociais no país. Mas como e por quais motivos o discurso do malandro permanece como um traço distintivo da cultura nacional?
 
– A própria sociedade que condena o malandro oferece brechas para que ele possa agir. O Estado está repleto de representantes de uma suposta ordem que recorrem ao poder para atingir finalidades pessoais – destaca Giovanna.
 
Livro destaca o malandro e a malandragem na cultura brasileira
 
Nesse sentido, a "malandragem" tem aspectos positivos e negativos.
 
– Existe um limite tênue e flexível que as separa. É positivo o jeito informal e simpático do brasileiro contornar as situações. Por outro lado, a malandragem negativa dá espaço para atitudes corruptas, como o nepotismo – pondera.
 
Uma das situações mais emblemáticas da "malandragem" é o chamado "conto do vigário", em que o ingênuo pensa estar enganando o esperto. Ou seja, o mané (ou otário) pensa que pode enganar o malandro.
 
– Esta dicotomia aparece em muitas músicas de Noel Rosa e Wilson Batista. O otário é aquele que cai no golpe do malandro, seja por ganância ou ingenuidade. Os papéis de vítima e do agressor não são muito claros nesse caso", explica.
 
Durante a ditadura getulista do Estado Novo (1937-1945), os malandros – entre eles vários sambistas – eram perseguidos pela polícia. Mas a relação do malandro com o poder oficial varia de acordo com o momento histórico.
 
– Hoje, a figura do malandro sambista dos anos 1930 é romantizada. Há uma glamourização do Rio antigo e da Lapa, como reduto da malandragem. Isso ocorre porque vivemos uma violência mais pesada, a do narcotráfico. O traficante não é malandro, pois segue uma lógica empresarial, ligada ao capital e com hierarquias a serem respeitadas. O malandro é anti-hierárquico e age de acordo com sua vontade própria – conclui.
 
 
 

Fonte: Faperj