A expansão da cobertura da Atenção Primária na Saúde (APS) do Rio de Janeiro, por meio das Clínicas da Família, foi a principal causa da redução das internações em hospitais públicos da capital. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, graças à ampliação da cobertura, que hoje chega a quase 70% da população, a proporção de internações hospitalares – causadas por doenças como hipertensão e diabetes – caiu 38,5% em comparação com 2008, quando a cobertura era de 3,5%.
O índice de internações passou de 31,9% para 19,6%, nesse período. A reforma da Atenção Primária à Saúde no Rio de Janeiro é tema de destaque da Conferência Mundial de Medicina de Família e Comunidade (Wonca 2016) que começou dia 2 de novembro no RioCentro, Zona Oeste do Rio.
De acordo com o secretário municipal da saúde, Daniel Soranz, somente entre 2014 e 2016, a prefeitura economizou cerca de R$ 120 milhões com internações por causas sensíveis à APS. “Hoje mais de 85% dos hipertensos e diabéticos já têm acompanhamento regular e integral nas Clínicas da Família do município, recebendo orientação sobre mudança de hábito para ter uma vida mais saudável”, disse ele.
Sorans ressaltou que cerca de 80% dos problemas de saúde são resolvidos na Atenção Primária, e que os países que investem nesta estratégia têm alcançado um sistema de saúde sustentável e mais qualidade de vida para seus habitantes. O modelo da Atenção Primária na cidade, disse ele, foi inspirado em ações já consolidadas na Inglaterra, Canadá, Cuba e Portugal.
No site da secretaria, basta preencher o endereço para saber qual clínica onde se deve ir e nomes do médico e do enfermeiro responsáveis pelo seu cuidado. São aproximadamente 1,2 mil equipes que atendem em média 4 milhões dos cerca de 6,5 milhões de cariocas. Algumas unidades têm academias e hortas comunitárias.
Nos últimos oito anos, foram inauguradas mais de 140 novas unidades e abertas mais de 28 mil novas vagas para profissionais de saúde. Ainda segundo a secretaria, quase 55 mil profissionais atuam na atenção primária, entre eles, cerca de 10 mil médicos.
A assistente social Neide Santos, 40 anos, passou a frequentar a Clínica da Família na Tijuca, zona norte, desde que nasceu seu bebê, Enzo, há seis meses. “É bom, porque é perto de casa, a médica conhece a nossa história, tem acompanhamento mais próximo. Como precisei de outras especialidades, ela me incluiu no Sistema de Regulação e tive acesso facilitado às outras unidades por essa relação mais próxima”, contou.
Demora na marcação de consultas e de exames
Mas nem tudo são flores. Usuários de algumas unidades reclamaram da dificuldade de marcar consultas com especialistas e exames médicos, que necessariamente são feitos na clínicas, por meio do Sistema de Regulação de Vagas.
A dona de casa Maria de Nazaré, 51 anos, disse que é muito bem atendida na clínica que frequenta, em Campo Grande, zona oeste, mas que, se precisar de atendimento especializado ou exame, a espera pode levar meses.
“Já precisei de um oncologista e esperei três meses para ser atendida. Ainda bem que não tinha um câncer, porque talvez nem estivesse aqui para contar a história,” disse ela. “É pena não poder contar com alguns especialistas dentro da clínica. Ginecologista, por exemplo, a mulher precisa com frequência”, explicou.
Um agente comunitário que pediu para não ter o nome divulgado reclamou das condições de trabalho. “Precisamos fazer visitas rotineiras aos pacientes, entregar pedidos de exame, ver a pressão do senhorzinho que tem hipertensão, enfim, são vários tipos de visitas. As distâncias são grandes muitas vezes, nem sempre tem carro, não temos telefone funcional para facilitar a comunicação com os pacientes”, relatou.
“Já aconteceu de não encontrar a casa de um paciente e tive que voltar para a clínica. Se tivesse um celular, podia pedir orientação e encontrado o endereço. Além disso, tem locais que a gente sabe que são violentos, que têm milícia, que têm tráfico. É muito complicado. E o paciente acaba achando estamos de má vontade”, desabafou o agente.
Terceirização e Organização Social
A terceirização e contratos temporários dos funcionários também são pontos criticados por médicos e funcionários das clínicas. “Isso gera precarização e instabilidade. Pois com essa falta de vínculo, fica mais difícil cobrar por melhores condições pelo medo de ser demitido”, comentou um enfermeiro que trabalha em clínica de saúde, administrada por uma Organização Social. Ele não quis ter o nome divulgado.
Uma médica do município que pediu anonimato defendeu a contratação de profissionais estatutários para evitar a alta rotatividade, o que impede o vínculo, um dos pilares do programa.
“Jovens médicos ficam por pouco tempo nas unidades e depois saem para outros empregos ou residência médica. A secretaria tentou driblar isso instituindo um programa de residência em saúde da família com número de vagas significativo e uma bolsa diferenciada, mas mesmo assim não consegue resolver a questão. Acho que resolveria se fossem estatutários”, opinou.
“Além disso, há muita pressão dos gerentes em cada clínica de se atingir números, metas, com pouca preocupação com a qualidade do atendimento. É uma questão séria para mim. Saúde não é número”.
“A população, quando é bem atendida, gosta muito da estratégia. Ainda mais para quem precisa de atendimento domiciliar. Mas muitos têm saudades da administração anterior, seja por ligação com determinados profissionais, seja porque acham que era mais garantido ter a consulta. A ideia de que a estratégia seja a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS) me parece justa, a questão é a coisa na prática, com as condições que temos”, lamentou.
Desafios do Brasil na APS
O Brasil hoje tem 40 mil equipes de Estratégia de Saúde da Família. De acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Thiago Trindade, para o país alcançar a cobertura plena seriam necessárias 70 mil equipes.
A cidade de Florianópolis é a única do país com 100% de cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS). A média nacional de cobertura nas capitais é de cerca de 50%.
“Precisamos formar ainda muito médicos de família, até porque nessas 40 mil equipes, muitos não se especializaram em medicina de família. Precisamos expandir as vagas de residência”, afirmou. “Além da falta de recursos humanos, outro desafio é que as pastas municipais percebam que Atenção Primária é o melhor investimento para saúde e construam unidades, tecnologia de informação e melhorem essa estrutura. Pois as pesquisas mostram que – no médio e longo prazos – esse investimento traz enorme economia para os cofres públicos que deixam de gastar com internações hospitalares”.
Unidades de Saúde da Família
A Atenção Primária à Saúde (APS) ou Atenção Básica no Sistema Único de Saúde se materializa nas Unidades de Saúde da Família (USF). Essas clínicas priorizam a atenção primária personalizada por territórios. O médico atende a um determinado número de pacientes, que moram próximo do local de atendimento. O trabalho é feito em equipe, que inclui enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde, agentes de vigilância em saúde, dentistas, auxiliar de saúde bucal e técnicos de saúde bucal, criando vínculos e promovendo a prevenção.
A conferência hoje iniciada tem duração de cinco dias e vai abordar até domingo (6) temas que como Atenção à Saúde em Favelas e outras regiões de violência e vulnerabilidade, Desafios da Consolidação das residências no Estado do Rio de Janeiro e Medicina Rural, entre outros temas.